A Tradição Reformada e a Necessidade de uma Visão Equilibrada do Espírito Santo
- Glalter Rocha
- 7 de mar.
- 6 min de leitura
Atualizado: 18 de mar.
A tradição reformada sempre atribuiu ao Espírito Santo um papel central na regeneração e na iluminação do crente. No entanto, muitos cessacionistas dentro dessa tradição reduzem a obra do Espírito a esses aspectos, ignorando Sua ação contínua na capacitação espiritual e nos dons para edificação da Igreja. Essa visão limitada precisa ser confrontada com as Escrituras, que apresentam uma obra multifacetada do Espírito, tanto na salvação quanto na missão da Igreja.
O Enfoque Reformado na Regeneração e Iluminação
A doutrina reformada ensina que a regeneração é um ato monergístico do Espírito Santo. Para entender isso de maneira simples, imagine que um adolescente está dormindo profundamente e alguém precisa acordá-lo. Ele não pode se despertar sozinho, precisa que algo externo o desperte. Da mesma forma, na regeneração, o ser humano, espiritualmente "morto" em seus pecados (Efésios 2:1), não pode responder a Deus por conta própria. O Espírito Santo entra em cena e o "desperta", dando-lhe uma nova vida espiritual, capacitando-o a responder ao evangelho. Isso é o que significa monergismo: um ato realizado exclusivamente por Deus, sem a cooperação humana.
Essa verdade está fundamentada em passagens como João 3:5-6, onde Jesus ensina que é necessário "nascer da água e do Espírito", e Tito 3:5, que explica que Deus "nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo". John Owen, um dos grandes teólogos reformados, descreve essa obra como o ato de Deus que "torna o pecador espiritualmente vivo", permitindo que ele creia e se arrependa.
Já a iluminação é o processo pelo qual o Espírito Santo continua a agir no crente, ajudando-o a compreender e aplicar as verdades bíblicas. Imagine um cego que, após uma cirurgia bem-sucedida, começa a enxergar, mas precisa de tempo para reconhecer formas e cores. Da mesma forma, após a regeneração, o crente precisa de iluminação para compreender as Escrituras e crescer na fé. Como ensina 1 Coríntios 2:12-14, é o Espírito quem revela as "coisas profundas de Deus", tornando possível ao crente discernir verdades espirituais que, para os não regenerados, parecem loucura.
Além da Regeneração: O Revestimento de Poder e a Ação Contínua do Espírito
A distinção entre regeneração (novo nascimento) e revestimento de poder (capacitação espiritual) é essencial para entender a obra integral do Espírito Santo. Enquanto a regeneração é o fundamento da vida cristã, o revestimento de poder é a expressão prática do Espírito para a missão e edificação da Igreja.
O Testemunho de Jesus e o Livro de Atos
Jesus ordenou aos discípulos que esperassem em Jerusalém até serem "revestidos de poder do alto" (Lucas 24:49), mesmo após Sua ressurreição. Isso revela que a regeneração (já experimentada pelos discípulos) não excluía a necessidade de uma capacitação adicional. Em Atos 2, o Espírito Santo desce sobre eles, concedendo dons como línguas e profecias, marcando o início de uma Igreja ativa e sobrenatural.
Outros exemplos em Atos confirmam esse padrão:
Atos 8:14-17: Os samaritanos, convertidos por Filipe, só recebem o Espírito após a imposição de mãos dos apóstolos.
Atos 10:44-46: O Espírito cai sobre os gentios na casa de Cornélio antes mesmo do batismo, evidenciando que a plenitude do Espírito não está limitada a ritos ou hierarquias.
Atos 19:1-6: Os discípulos de João Batista em Éfeso são batizados no Espírito após o ensino de Paulo.
Esses relatos mostram que o revestimento de poder era experiencial, replicável e necessário para a expansão do evangelho.
Respostas a Argumentos Cessacionistas
1) "Os dons miraculosos eram apenas para o período apostólico, como sinais de autenticação da mensagem (Hebreus 2:3-4)."
Argumento cessacionista: Cessacionistas afirmam que os dons como línguas, curas e milagres serviam para autenticar os apóstolos e o evangelho no início da Igreja. Uma vez estabelecido o cânon bíblico, esses dons teriam cessado.
Resposta bíblica e teológica:
Hebreus 2:3-4 menciona que "Deus também testificou, por meio de sinais, maravilhas e vários milagres, e por dons do Espírito Santo". No entanto, o texto não afirma que esses sinais cessariam, apenas que corroboravam a mensagem apostólica.
Atos 8:6-7 mostra Filipe (não apóstolo) realizando milagres, e Atos 19:11-12 relata que até objetos tocados por Paulo curavam pessoas. Isso indica que os dons não eram exclusivos dos apóstolos.
1 Coríntios 12:7-11 destaca que os dons são distribuídos "a cada um" para o bem comum, sem restrição temporal.
Conclusão: Os dons não eram apenas "sinais apostólicos", mas recursos permanentes para a Igreja.
2) "1 Coríntios 13:10 afirma que os dons cessariam quando viesse o 'perfeito' (a Bíblia)."
Argumento cessacionista: Alguns interpretam que o "perfeito" se refere ao cânon bíblico completo, tornando os dons (como profecias e línguas) desnecessários após sua conclusão.
Resposta bíblica e teológica:
1 Coríntios 13:12 esclarece que o "perfeito" é contrastado com o "agora" (visão parcial), não com a Bíblia. Paulo usa a metáfora de um "espelho" (visão indireta) versus "face a face" (visão direta de Deus). Isso aponta para a segunda vinda de Cristo, quando a fé se tornará visão (1 João 3:2).
Efésios 4:11-13 afirma que os dons permanecerão "até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus". Como a Igreja ainda não alcançou essa maturidade, os dons continuam relevantes.
Conclusão: O "perfeito" não é a Bíblia, mas a consumação do Reino em Cristo.
A Necessidade do Revestimento de Poder na Igreja Hoje
Sam Storms, em The Beginner's Guide to Spiritual Gifts, alerta:
"A igreja moderna está cheia de crentes bem informados, mas espiritualmente impotentes. Conhecemos doutrinas, mas não experimentamos o poder que as sustenta."
Esse diagnóstico reflete a urgência de buscar o revestimento de poder (Lucas 24:49). Wayne Grudem, em Teologia Sistemática, reforça que não há base bíblica para limitar os dons ao período apostólico. Pelo contrário, textos como João 14:16 ("O Consolador... habitará convosco para sempre") indicam que o Espírito permanece ativo em todas as eras.
Conclusão: Entre o Conhecimento e o Poder
A tradição reformada, ao enfatizar a soberania de Deus e a suficiência das Escrituras, não precisa excluir a dimensão experiencial do Espírito.
O desafio hoje é:
Recuperar a teologia do revestimento de poder, sem cair em espiritualidade superficial.
Equilibrar doutrina e experiência, como Paulo em 1 Coríntios 14:1 ("Segui o amor, mas procurai com zelo os dons espirituais").
O Modelo Continuísta nas Escrituras
A Igreja primitiva não via os dons como temporários. Em 1 Coríntios 12-14, Paulo instrui uma igreja já estabelecida a buscar dons espirituais, especialmente a profecia (1 Coríntios 14:1). Ele não menciona que esses dons cessariam, mas sim que devem ser exercidos com ordem e amor (1 Coríntios 14:26-40).
Essa perspectiva se harmoniza com as palavras de Jesus em João 14:16-17, onde Ele promete o Espírito Santo como "Consolador" que permaneceria para sempre com a Igreja. O termo "para sempre" reforça a continuidade do ministério do Espírito até a plenitude dos tempos. Além disso, Efésios 4:11-13 destaca que os dons ministeriais, incluindo profetas e evangelistas, foram dados para a edificação da Igreja "até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus".
Historicamente, os pais da Igreja atestaram a continuação dos dons. Justino Mártir (séc. II), Irineu de Lió (séc. II) e Agostinho (séc. IV) relataram manifestações carismáticas entre os cristãos.
A tradição reformada tem enfatizado a soberania divina na distribuição dos dons. John Calvin, em Institutas da Religião Cristã, reconhece que o Espírito "não apenas ilumina, mas também vivifica e move" o crente para a obediência. O erro cessacionista, segundo estudiosos reformados carismáticos, está em restringir a atuação do Espírito a um período específico da história da redenção.
Reflexão Final: Equilíbrio entre Soberania e Poder
A tradição reformada precisa recuperar a integralidade da obra do Espírito:
Regeneração e iluminação (João 3; 1 Coríntios 2) — fundamentos da salvação.
Revestimento de poder (Lucas 24:49; Atos 1:8) — ferramentas para missão e edificação.
Aos cessacionistas: A Bíblia não limita o Espírito à regeneração. Negar Seu poder contínuo é correr o risco de reduzir a fé a um mero intelectualismo.
Aplicações Práticas:
Cultivar um ambiente de oração e expectativa pelo poder do Espírito.
Ensinar sobre os dons espirituais com base em 1 Coríntios 12-14, enfatizando ordem e edificação (1 Coríntios 14:40).
Reconhecer que a soberania de Deus não exclui a ação sobrenatural, mas a inclui (Romanos 15:19).
Conclusão
A obra do Espírito Santo não é um dilema entre regeneração e poder, mas uma síntese bíblica. Assim como os primeiros cristãos, somos chamados a depender dEle tanto para a santificação quanto para a missão. Que a Igreja reformada não tema revisitar suas premissas, pois "onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade" (2 Coríntios 3:17). Pastor Glalter Garcia Justo Rocha
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